12/03/13

LUME EM MAO-COMUM. Texto Carlos Calvo.


A gente do C.S. A Revolta do Berbês começou no passado Ano Velho a recuperar e investigar a tradiçom do lume novo. A reactivaçom da roda cíclica do tempo tradicional ritualiza-se amiúde com lume. O mais conhecido é o da cacharela de San Joám no solstício de verao, mas também os há no inverno, na estrutura simbólica em que aparece o lume novo, o toro de Natal e o Apalpador, quando a luz vence a noite.
Mais ou menos à mesma hora na que a rapaziada de Vigo prendia os fachos diante do local no que se imprimiu o Cantares Gallegos, no pátio de isolamento do cárcere de Topas um preso espanhol, um basco e um galego, faziam algo parecido. Um pátio de isolamento é, basicamente, um cubículo de cimento. Correndo, tem exactamente dezasseis passos de longo e nove de largo. Correr nele tem pouco de desporto: no melhor dos casos é algo parecido a meditar passando as contas dum rosário, no pior, tem mais semelhanças com um hámster numha rodinha. Os muros som o suficientemente altos como para que só se poda ver o céu e, nalguns casos, através dumha grelha. De dia, e com sorte, pode-se ver algumha águia ou bandas de cegonhas migrando. De noite, o latifúndio das estrelas, ocupado e socializado polos sem terra de todas as prisons do mundo. Mas, sobretodo, um pátio de isolamento é isso: um cubículo, umha geometria despida. A geometria é eterna, perfeita e sem existência no mundo material. Os presos, os corpos, mortais, imperfeitos e molestamente existentes. Simplesmente com sermos, impugnamos a totalidade desta geometria inumana que, paradoxalmente, é incompatível com o seu cometido, como umha ponte que devora rios ou um lápis que repele palavras. Ao cárcere dá-lhe nojo o preso. Estorva-lhe. Por isso os carcereiros costumam responder incomodados com um “¿Qué quieres?” ou “¿Qué te pasa?”. A nossa presença é um erro, umha irrupçom dos corpos imperfeitos tam molesta como as bostas dos cavalos nos desfiles militares.

Era, como dizia, fim-de-ano, e três presos celebravam sem sabê-lo o lume novo. O estremenho marchava em liberdade numha semana, e botando mao dum ritual de purificaçom quase universal, despiu-se da vida velha e prendeu-lhe lume para começar a nova. Un par de sapatilhas fôrom parar ao arame farpado, aumentando um milhadoiro carcerário. Outro, iniciou o fogo, alimentado com partes de sançons penitenciárias e o Stranger on a train de Patricia Highsmith. E assim, queimar um livro foi um acto contra a barbárie: esvaeceu a geometria e deixou passo à parêntese estremecida que todo homem inaugura. Para aquecer o corpo e a alma. De igual jeito que Kant pode admirar o céu estrelado desde a aldeia mais miserável do mundo, a mais humilde cacharela é capaz de condensar a magia dum acontecimento. Umha luz viva e palpitante, que engendra as sombras elogiadas por Tanizaki, os recintos nos que habita o encontro. Contra a luz fria e omnipresente da modernidade e que tem sempre algo de policial, de bisturi ou foco de vigilância, “um horror para realçar outros horrores”, dixo-lhe Robert Louis Stevenson; e que fai a Alba Rico sonhar com um apagom que “embridará os watios e despirá os astros”, que “apagará Dubai e Nova Iorque e acenderá a Ursa Maior”.
Na política zapatista as maos, “é sabido! som as figuras que costumam tomar os coraçons quando se encontram”. Os símbolos, sym-bolos, som a convergência das pessoas através de um objecto. Isto é, os símbolos som maos, a forma que atinge um encontro, a materializaçom do comum: o mao-comum. O lume, com esse fascínio prometeico, é um símbolo universal, e todos os símbolos tenhem algo de lume, de chama e chamada. Um contentor ardendo numha rua tomada pola polícia é já um calor e umha luz solidária, horizontal e circular –a disposiçom espacial dos iguais- face à luz vertical e ameaçante do helicóptero policial.
Algumhas palavras, velhas e pouco sofisticadas, ainda som como foguinhos. Abrem refúgios na noite e, en vez de iluminar-nos –como fai a luz soberba e cegadora de Deus, a Ilustraçom e outras palavras com maiúsculas- alumam-nos. O justo para encontrar-nos e reconhecer-nos, o mínimo indispensável para un fogar (focolaris) onde cuidar-se e tirar o frio. Palavras, ou foguinhos, como dignidade, terra, a casa da nai, independência…. Para dar-nos as maos e encher as maos de maos, privilégio dos que levamos as maos vazias. Para sermos.
Carlos Calvo Varela. Topas, 6 de Fevereiro

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